O Mundo Mortífero da Máfia de Mineração de Areia na Índia
A Índia ocupa o segundo lugar, a seguir à China, no uso de areias para construção, um recurso cada vez mais escasso e valioso.

DEHRI ON SONE, BIHAR, ÍNDIA – “Vocês são jornalistas? Estão interessados na mineração de areia?”
Estamos em apuros.
As perguntas são feitas pelas forças musculadas da região. Quatro homens de braços enormes e olhos arregalados que bloqueiam o nosso SUV branco para interrogar o meu companheiro de caminhada, Siddharth Agarwal, enquanto eu estou num dhaba, um restaurante à beira da estrada no norte da Índia. A nossa mesa de plástico estremece com a passagem de camiões pesados. O que transportam estas colunas de veículos? Uma torrente de areia: leitos dragados do rio Indo e dos seus afluentes, no destituído estado de Madia Pradexe. Cada camião tem como destino zonas de construção distantes. Grande parte da carga é ilegal. A areia é uma mercadoria lucrativa na Índia e alimenta um mercado negro que é ameaçado e protegido por mercenários. Os mineiros de areia já mataram policias que tentaram acabar com a mineração nos rios e assassinaram repórteres que expuseram as práticas ilegais de escavação de cursos de água. Agarwal e eu trocamos olhares.
“Estamos à procura de jornalistas que nos ajudem”, diz um dos homens corpulentos.
A sério?
"Sim. Os outros tipos ao fundo da estrada estão a extorquir demasiado dos camiões”, diz o homem. “Eles deixam-nos com pouco dinheiro. Nós temos documentos que o provam. Não é justo. Queremos avisar a comunicação social”.
Na Índia, todos se queixam – até a máfia da areia.
O contrabando de areia pode parecer estranho para a maior parte das pessoas. Este humilde recurso é composto por pedras e grãos minúsculos de sílica e de quartzo, escoados das montanhas em erosão para os rios. As areias mineradas ilegalmente não evocam o romance sombrio de, digamos, diamantes de sangue, ou o percurso do tráfico de vida selvagem. Para além disso, parece existir um abastecimento infinito deste material. Só que não existe. (Veja o vídeo de Paul Salopek com cenas de extração de areia em dois rios na Índia – o Betwa, em Utar Pradexe, e o Sone, em Bihar.)
A nossa civilização moderna é construída sobre areia: betão, estradas pavimentadas, cerâmica, metalurgia, prospeção de petróleo – até os ecrãs dos smartphones – tudo isso exige a humilde substância. A areia do rio é a melhor: os grãos de areia do deserto são frequentemente arredondados demais para servirem como agentes aglutinantes industriais, e a areia marinha é corrosiva. Um estudo das Nações Unidas estima que o consumo total de areia pela humanidade – mais de 40 mil milhões de toneladas por ano – atinge agora o dobro da quantidade de sedimentos reabastecidos naturalmente na Terra pela soma dos rios mundiais.
Hoje, a areia tornou-se tão valiosa que é transportada ao longo de distâncias enormes: a Austrália envia embarcações de areia para a Arábia, para projetos de recuperação de terras. A China, a principal construtora mundial, também é o maior glutão de areia do planeta. Entre 2011 e 2014, os chineses usaram mais betão – composto principalmente de areia – do que os Estados Unidos durante todo o século XX. A Índia, com as suas megacidades, ocupa o segundo lugar no consumo mundial de areia.
Muitas vezes, ao longo dos meus 3.700 km a atravessar a Índia a pé, encontro evidências deste apetite voraz.
As retroescavadoras rasgam os leitos arenosos de dezenas de rios, expondo canais de rocha, lodo e argila. Os batelões frágeis transportam montes de areia para portos improvisados. As estradas estão deformadas e esburacadas pelas armadas de camiões sobrecarregados de areia. O custo ambiental desta indústria, monitorizada de forma deficiente, é incalculável.
"A mineração de areia pode mudar o curso dos rios", diz Rishikesh Sharma, biólogo reformado do governo indiano que trabalha há anos no Santuário Nacional de Chambal, uma reserva importante que abriga crocodilos (gavial) em extinção e golfinhos do rio. "A mineração prejudica a vida selvagem, removendo as zonas de desova dos habitats".
A mineração desenfreada de areia também prejudica diretamente as pessoas.
Retirar areia dos rios faz com que os lençóis freáticos diminuam – uma preocupação omnipresente na Índia, onde milhões de pessoas já enfrentam uma escassez histórica de água. A mineração massiva de areia também erodiu os deltas dos rios em toda a Ásia, expondo as comunidades costeiras à perda severa de terras, agravando os efeitos da elevação do nível do mar induzidos pelas alterações climáticas.
As autoridades indianas insistem que estão a manter a ordem.
O estado de Utar Pradexe instituiu uma interdição de mineração que é suposto vigorar até que os rios consigam recarregar as suas bases arenosas. Outras regiões proíbem as operações industriais em grande escala. Em teoria, as licenças limitam a extração de areia. Mas na Índia, os lucros da indústria de construção ajudam a manter a mineração de areia sem lei.
No rio Betwa, em Madia Pradexe, encontrámos mineiros receosos que vivem em acampamentos sem condições. Eles dizem que os trabalhadores e as tendas foram arrastados pelas descargas repentinas das barragens. No Ganges, em Utar Pradexe, equipas com retroescavadoras revolvem as areias debaixo dos ghats funerários – piras ribeirinhas onde os hindus cremam os seus mortos. E numa operação de grande escala, no rio Sone, em Bihar, milhares de homens trabalham por turnos para encherem diariamente 300 camiões com areia, ganhando 500 rúpias (pouco mais de 6 euros) por camião: o dobro do salário que se ganha a trabalhar no campo.
“É impossível que o Sone fique sem areia – como é você pode dizer isso?” diz Vinay Kumar, um trabalhador de 22 anos. “Cada monção traz areia nova.”
Mas Kumar admite que, desde que era adolescente e começou a trabalhar como mineiro, o leito do rio Sone desceu pelo menos 2 metros.
Entretanto, regressando ao ponto de partida, no rio Indo, a quadrilha de homens musculados – que se queixa da extorsão e nos atormenta no restaurante à beira da estrada – sabe que as coisas não são assim.
“O rio vai secar”, prevê o chefe do grupo.
Ele é sincero e imparcial. Identifica-se pelo nome de Rajiv Yadav.
Yadav diz que na Índia a máfia da areia não vai desaparecer assim tão depressa, pois engloba muitos empresários e políticos. Segundo ele, só o dinheiro pago em "regalias" à polícia é o suficiente para inflacionar o preço das areias finitas do rio, passando de 15.000 rúpias (cerca de €180) por camião, para 40.000 a 80.000 rúpias. É escandaloso. Tudo o que ele pede é justiça – a sua parte do quinhão. E quando as areias naturais desaparecerem, talvez possam ser feitas novas areias artificialmente, esmagando rochas... ou tijolos.
Este artigo foi publicado originalmente em inglês no site nationalgeographic.com